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1. ERVAS FLUTUANTES (Ukigusa) Silvia Daniele
 

Ficha Técnica: Argumento: Kogo Noda e Yasujiro Ozu; Director de fotografia (Agfacolor): Kazuo Miyagawa; Iluminação: Sachio Ito; Cenários: Tomoo Shimogawara; Música: Kojun Saito; Interpretação: Ganjiro Nakamura (Komajuro Arachi), Machiko Kiyo (Sumiko), Ayako Wakao (Kayo), Hiroshi Kawaguchi (Kiyoshi), Haruko Sugimura (Oyoshi), Hitomi Nozoe (Aiko), Ryu Chishu (o dono do teatro), Hiroshi Mitsui (Kichinosuke), Haruo Tanaka (Yatazo), Yosuke Irie (Sugiyama), Hiraku Hoshi (Kimura), Mantaro Ushio (Sentaro), Kumeko Urabe (Shige); Produção: Daiei; Duração: 119 minutos

 

            Komajuro e os seus actores ambulantes chegam a uma pequena cidade do litoral. O homem trouxe até aí a sua companhia com o intuito secreto de se encontrar com o seu filho Kiyoshi, nascido de uma relação com Oyoshi, que vive gerindo uma izakaya (taberna). Sumiko, actriz e actual mulher de Komajuro, descobre a verdade e, cheia de ciúmes, decide vingar-se, incitando a jovem e linda actriz Kayo a seduzir Kiyoshi. Enquanto os outros actores da companhia tentam sem sucesso seduzir as mulheres da cidade, os dois jovens apaixonam-se um pelo outro. A companhia teatral conhece sérias dificuldades financeiras, Komajuro descobre a trama de Sumiko e furioso, critica asperamente as duas mulheres. Kayo e Kiyoshi fogem então para um hotel não muito distante.

            Depois de ter vendido todos os bens da companhia e dissolvido a troupe, Komajuro vai ter uma vez mais com Oyoshi e, entretanto chegam Kiyoshi e Kayo. Durante o dramático confronto entre pai e filho, a mãe revela a Kiyoshi a verdadeira identidade de Komajuro. O jovem responde que já não precisa de um pai e que quer continuar a ver o seu como morto. Na sala de espera da estação Komajuro reencontra Sumiko. Os dois seguirão a viagem juntos.

 

            Depois de ter realizado Bom dia, Ozu, em 1959, aceita a proposta de Nagata Masaichi para rodar um filme por conta de Daiei. O realizador e o guionista optam por um remake de Conto de ervas flutuantes, que intitulam simplesmente de Ervas flutuantes.

            Já a partir do tema da história, emerge a característica de fidelidade assumida pelo filme em relação ao de 1934, com a excepção de algumas variações de segundo plano que concernem à diferença da aldeia onde se desenvolvem os acontecimentos, bem como uma atenção mais explícita às relações sexuais entre Kiyoshi e Kayo. A relação entre pai e filho, a impossibilidade da autoridade paternal, as cenas de violência e de revelação, os sentimentos que ligam e dividem as várias personagens, assumem nos dois filmes significados semelhantes. Também relativamente ao plano estilístico, Ervas flutuantes propõe mecanismos do filme em que se baseia, embora adaptando-os ao Ozu doa anos 50, que aponta a formas de abstracção e generalização do espaço, dos acontecimentos e dos sentimentos representados.

            Ervas flutuantes pode ser visto como o filme mais representativo daquela dimensão nostálgica presente em muitos filmes de Ozu desse decénio. Este ponto é evidente no carácter de remake do filme e no seu evocar de um determinado ambiente: a pequena cidade do litoral (casas de madeira e cartazes com a frase cuidado com o fogo), pequenas lojas de artesãos, bares acolhedores onde se pode beber saké e velhos teatros onde as pessoas assistem aos espectáculos sentadas no chão. Um lugar onde o tempo parece ter parado e onde a aparição de um cartaz publicitário de uma empresa de pneumáticos parece anacrónico. Tal como semi-anacrónica é a existência de uma companhia ambulante de Kabuki no final dos anos 50.

A dimensão nostálgica vem tratada com a habitual leveza e com o recurso, pelo menos na primeira parte, a uma série de situações cómicas jogadas sobretudo pelos actores da companhia de Komajuro à procura de aventuras galantes. Pensamos na cena onde um actor entra no cabeleireiro onde trabalha uma jovem muito bonita, acabando por fazer-se cortar a barba pela mãe da rapariga, que com ar feroz afia a navalha sob o olhar assustado do jovem. Os parênteses leves desaparecem na segunda parte da obra, onde prevalece um tom dramático, ligado às relações e aos sentimentos que ligam os protagonistas.          Mas a característica mais saliente é a estilização geométrica que gere quer a narrativa quer a linguagem, conferindo à história uma dimensão abstracta. Esta dimensão abstracta encontra-se na estrutura narrativa; as cenas do teatro, no izakaya de Oyoshi, no cabeleireiro, ressurgem mais do que uma vez e frequentemente na mesma ordem, propondo de novo temas análogos.

            A estilização própria da estrutura narrativa vem retomada na montagem, como podemos ver na técnica pela qual está construída a cena inicial, jogada sobre a presença do farol numa série de enquadramentos do mar, que nos trazem até à pequena estação de barcos onde um homem está a colar um cartaz publicitário da companhia de Komajuro. A geometrização do espaço é sublinhada, no primeiro enquadramento, por duas linhas verticais e paralelas representadas pelo farol no fundo, e por uma garrafa de saké em grande plano. Sucessivamente, o paralelo será retomado na permanência do farol e pela substituição da garrafa por um poste de electricidade. A cor submete-se também a este processo de abstracção formal. Tomamos dois exemplos. O primeiro é constituído pelo enquadramento, repetido, da entrada da taberna circundada por um jogo de quadrados de vidro brancos, vermelhos e azuis. O segundo é o diálogo entre Kiyoshi e Kayo na praia. O jogo das formas e das cores dos barcos que ficam atrás da imagem de Kayo é perfeito. Assim como é também perfeito o triângulo vermelho desenhado por um outro barco que fica atrás de Kiyoshi, quando o jovem está enquadrado junto a Kayo. Mas quando o enquadramento compreende apenas Kiyoshi, o fundo misteriosamente muda e o barco desaparece, sinal evidente que à verosimilhança Ozu prefere a estilização. A função estilizante da cor encontra-se também nas performances de Kabuki que aponta sempre para o carácter aceso e brilhante das cores. Uma grande ajuda neste refinado jogo cromático foi sem dúvida o director de fotografia da Daiei Miyagawa Kazuo, que substitui aqui o fiel Atsuta Yuharu. Também em relação ao som, recorreu-se ao som rítmico, (rítmico e constante demais para ser real), produzido por cigarras, grilo, pelo bater da chuva, motores de barcos e comboios, flautas e tambores.