Ciclo Cinema Yasujiro Ozu

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4. FILHO ÚNICO (Hitori Musuku) Francesca Repetto

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Filho Único é um dos filmes mais amargos do cinema de Ozu dos 30 com o Eu nasci, mas (1932) onde o toque suave mitiga os tons profundos. O realizador recupera a figura do sacrifício (que vemos em Otsune nos confrontos do filho Ryosuke) para mostrar a inutilidade não causada dos cruéis jogos do destino, mas com uma precisa noção de realidade social. Assistimos à queda dos ideais da época Meiji (1868-1912) quando se pensava que a chegada da industrialização iria forçar a modificar o sistema de vida tradicional e, consequentemente, garantir emprego e um alto nível de vida. Em vez disso, no ano de 1936, 44% dos diplomados e dos licenciados não tinham trabalho. O desaparecimento de Ryosuke é um avolumar da crise, num país de tristeza e desolação. O campo aparece como uma realidade desintegrada onde o trabalho no campo é largamente substituído pelo trabalho nas fábricas, em que a mão-de-obra feminina tem um papel determinante.

No entanto, a desolação do campo encontra-se mais na metrópole. Tokyo em Filho Único é uma miserável periferia feita de ervas daninhas, paisagens vazias, casas decrépitas, tristes estabelecimentos industriais e lixeiras. As visitas da mãe e do filho aos principais centros da cidade são propositadamente mostrados em elipse. O pessimismo e os tons desolados manifestam-se desde a terra natal, no deslocamento entre filho e mãe, nas pesadas condições de vida, qualquer que seja o local em que estiverem, na vaidade do sacrifício, no fim das ilusões, que compõe um algo longe da dominante orientação de Shochiku e do director Kido Shiro que fazem uma bandeira com o optimismo. É também importante dizer que em duas ocasiões, Filho Único mitiga o clima de amargura geral: a primeira por meio da generosidade de Ryosuke que, sem hesitar, entrega dinheiro à mãe do menino ferido pelo cavalo, e noutra cena graças à decisão final de voltar a estudar para melhorar a sua posição. Se o primeiro reentra no humanismo e ponto de confluência das intenções de Ozu e Kido, o segundo parece só uma declaração de boa vontade que muito dificilmente poderá realizar-se.

A revelação, figura-chave no cinema de Ozu dos anos 30, aparece também em Filho Único, decompondo-se em três diversos momentos. Primeiro, quando Otsune descobre que Ryosuke mentiu afirmando não ter dito ao mestre querer continuar a estudar, descoberta que gerou a habitual reacção violenta (a mãe que esbofeteia o filho) e depois a atitude de compreensão e aceitação. A segunda revelação, mais articulada, torna a olhar a modesta realidade de Ryosuke em Tokyo. A reacção de Otsune é gradual e menos severa, e culmina nas cenas de incineração e da vela nocturna em casa de Ryosuke, quando o filho tenta justificar-se e a mãe censura-o por ter deixado de lutar. A última revelação mostra-se na generosidade de Ryosuke no episódio do menino ferido, que atenua a amargura de Otsune e faz o espectador perguntar-se se não terá sido essa generosidade que impedira a afirmação social do jovem.

Uma figura-chave que Ozu antecipa em Filho Único, que dominará Havia um pai (1941), é a separação entre filhos e pais. Aqui é provocado por uma evolução industrial e num sentido moderno da sociedade, que empurra os jovens a abandonar o campo para tentar a sua sorte na cidade. São ainda mais evidentes os sinais de invasão da cultura alemã no Japão nacionalista: desde o manifesto turístico em casa de Ryosuke com a inscrição Germany até ao filme sobre a vida de Schubert que ele vai ver com a mãe: Leise Flehen Meine Lieder (Willy Forst, 1933).

O clímax dramático do filme desenvolve-se ao longo de três cenas que sem solução de continuidade. A primeira desenrola-se em frente à incineração de lixo. A segunda é construída sobre a montagem de alternância de Ryosuke na escola e da mãe em casa. A terceira é naquela mesma noite com a vela. Sem sairmos do essencial, notamos que a cena da incineração abre-se sobre os paralelos formais entre as linhas verticais das chaminés e as figuras de Ryosuke e Otsune. Na desolada paisagem, os dois sentam-se e o filho pergunta se a mãe não ficou desiludida com o que viu em Tokyo. Ryosuke compadece-se tomando tons dramáticos: Eu resignei-me a uma vida medíocre. Não teria nunca de deixar os meus pais. Mas no momento da máxima desolação, intervêm a Natureza num acto de consolação, por meio do canto da cotovia seguido por dois planos de olhar para o céu, primeiro o filho e depois a mãe.

Analisemos a segunda cena: é jogada sobre a acção do pensar, vendo Ryosuke na escola, depois a mãe em cãs e, para terminar, outra vez Ryosuke na escola. Esta acção torna-se um dos motivos mais queridos de Ozu. Não é importante o que as personagens pensam, que pode ser demasiado claro, mas a acção que convida a uma reflexão dos espectadores. Os enquadramentos na escola desfrutam o efeito sonoro produzido pelo riscar dos lápis com que os estudantes executam o trabalho, mais o efeito de luz criado com o reflexo do néon a piscar perto da janela. O duplo efeito funde-se nos planos dedicados à mãe com um único efeito sonoro, aquele tique taque do relógio.

A terceira cena descreve o difícil confronto entre mãe e filho. Longos planos são dedicados à mãe envolta nos seus pensamentos. O filho aproxima-se e tenta justificar a mediocridade da sua existência. Mas não há via de salvação: O obstáculo maior é a tua cobardia não fico desiludida pela tua pobreza, mas pela tua total falta de coragem. Aos planos aproximados dos dois, contrapõem-se planos gerais nos fusuma (as portas correntes) que põem em campo a mulher de Ryosuke, estendida sobre o futon (colchão). São enquadramentos que antecipam o momento em que ela vai sentar-se a falar com o marido. A progressão dramática e os sentimentos das personagens (exprimidos pelo choro da mulher, pelo rosto contraído de Ryosuke, pelo silêncio da mãe) purificam-se na transição do plano do menino adormecido para o quarto vazio de Otsune. Os choros fora de campo acabam por ser substituídos pelo som do relógio. Muito devagar, o plano demora 50 segundos, e a imagem torna-se mais clara para fazer chegar os primeiros raios de sol de um novo dia.

Já falei de Willy Frost e do filme que Ryosuke e Otsune vão ver. Em Uma mulher deveria ser amada (1934), Ozu recorre mais uma vez a uma citação fílmica. Todavia, o jogo intertextual não pode ser reduzido somente à paixão cinéfila de Ozu ou à atracção que o Japão tinha pelos ares teutónicos

Trata-se de uma ocasião para uma irónica meditação do realizador sobre o próprio cinema e sobre as escolhas que o caracterizam: a passagem ao sonoro é subentendido nas palavras de Ryosuke que explicam à mãe que o filme que vêem é um talkie como se as imagens não falassem sozinhas. Mas a coisa não parece apaixonar muito a mulher que, em poucos minutos, adormece (o filme é falado em alemão e não tem legendas). Além disso, a cena citada de Ozu apresenta um vertiginoso movimento de câmara que acompanha, na montagem alternada, uma mulher a ser perseguida por um homem. Tudo isso, dentro de um filme como Filho Único, que é na prática, isento de movimentos, segundo as escolhas de rigor e economia expressiva.

É como se através de uma citação metafílmica, Ozu quisesse comparar a sua recusa em mover a câmara com os vertiginosos movimentos utilizados nos primeiros anos do decénio e que se vêem muito em filmes dos anos 40 e 50. Além disso, a invasão da cultura alemã não impede Ozu de fazer uma pequena homenagem ao star system do cinema americano com uma foto de Carol Lombard (grande estrela das comédias de La Cava e Lubitsch) pendurada numa parede da casa de Ryosuke.

Se muitas cenas são rodadas segundo as regras básicas do mudo, não faltam eficazes exemplos de utilização expressiva do som. Em particular, os sons diegéticos off a nível dos ecos ritmados das actividades industriais, as músicas dos vendedores ambulantes de ramen (sopa chinesa), mais a batida dos martelos dos artesãos; que criam uma dimensão quase surrealista de tudo. Importantes são também as pontes sonoras entre as cenas inserindo-se na montagem típica do cinema do realizador.

Se acrescentarmos os audazes efeitos de profundidade (como no enquadramento da chegada do comboio à estação); as anómalas soluções de foco; a utilização do espaço a 360º; as transições que parecem interromper uma cena, mas que pelo contrário constituem uma simples pausa; as outras transições que parecem introduzir um novo episódio; mais a utilização de espaços tendo um lugar privilegiado para colocar a câmara; tudo nos faz pensar que Filho Único é o filme que fecha, com esforço de síntese, o caminho feito pelo realizador nos primeiros 10 anos de carreira. Uma síntese que acaba por ser também uma abertura ao futuro como testemunham as imagens do epílogo: o modo de exprimir a solidão de Otsune no ofício são análogos aos mesmos finais de solidão nos seus filmes do pós-guerra, desde Primavera Tardia a O Gosto do Sake.  


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